Corpo Que Não Sobra
24 de junho de 2020
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Fotos e processo criativo Karoline Vitto
Entrevista Maria Canepa

Karoline Vitto é uma estilista brasileira que reside em Londres e interpreta a vida de corpos não padrão de uma maneira que me tocou de forma intensa e primitiva. Carregada de estética, ela opera o corpo feminino com delicadeza, intimidade, abraçamento e afeto. Para a Fort Magazine ela fala sobre seus processos de criação e pessoais, e sobre seu movimento de tomar para si, como mulher, o olhar sobre nossos corpos.
Como um corpo gordo me senti espelhada e livre para mostrar cada dobra, cada desejo, cada olhar sobre a minha própria beleza. Entrevistá-la é, para mim, uma oportunidade de evidenciar o efeito que Karoline pode cumprir em alguém que se sente representada pelo seu trabalho, este que cabe a qualquer corpo, envolve qualquer um.






Maria Canepa: Você exala sua relação corpórea de maneira tão explícita e transformadora ao mesmo tempo que sensível. O que é beleza para você, o que transmite, para quem e como isso permeia o seu trabalho?
Karoline Vitto: O meu conceito de beleza mudou ao longo do tempo, a gente primeiro recebe um conceito de beleza vindo da sociedade em que a gente é criado então eu acredito que para mim foi um processo. Nasci nos anos 90, recebi influências da televisão brasileira, das revistas e de tudo isso que você também deve ter recebido, e isso acaba moldando um pouco aquilo que você considera belo, né? Mas me mudei para cá (Londres) faz 5 anos e aos poucos fui me desligando de alguns desses conceitos. Depois de todo um processo, tanto como desconstrução pessoal quanto no meio acadêmico, através de pesquisa e de prática dentro do meu próprio trabalho, meu conceito de beleza mudou de algo que havia sido corpóreo para algo mais abstrato.Hoje em dia vejo a beleza muito mais como uma sequência de linhas, formas, volumes, proporções. Está muito mais relacionada a composição do que ao objeto inerente a essa beleza. Quando analiso, encontro beleza em um corpo, em uma foto, em um quadro, para mim são coisas muito similares. Encontro a beleza dentro da proporção e da composição dessas formas. Num processo anterior, a gente passa por toda essa educação em que a beleza está relacionada às influências patriarcais. Existiu esse primeiro momento na minha cabeça conforme fui crescendo e hoje em dia acredito que passei dessa página, pelo menos do ponto de vista lógico.
A beleza que transmito com meu trabalho é voltada para o olhar feminino, conscientemente tento quebrar esse padrão para que no meu trabalho a beleza não seja sexual, e sim relacionada a formas, proporções, volumes, composição. E que essa beleza seja tão extracorpórea, tão abstrata que desobjetifique esse corpo. Não tem um fim destinado ao homem - ao homem heteronormativo -, esse corpo tem um olhar destinado ao usuário e a quem quiser encontrar beleza nele. E acho que é dessa forma que ela - a beleza - permeia meu trabalho. É muito relacionada a trabalhar a composição, o peso das imagens, o balanço das cores. A maneira que crio sempre tem um corpo por trás, então essa roupa só existe se faz sentido para aquele corpo, e se a composição dessa imagem, como um todo, faz sentido enquanto imagem.
Maria Canepa: Quais são suas referências e qual sua relação com elas, elas te inspiram de maneira mais estética ou controversa?
Karoline Vitto: Boa parte da minha pesquisa é uma pesquisa pessoal, feita a partir de fotografias que produzi. É uma pesquisa primária que produzo para usar como referência. Mas aí minha pesquisa secundária passa por várias linguagens: fotógrafos, designers, escultores e tudo mais. Ultimamente alguns designers que têm me influenciado muito são Azzedine Alaia, Thierry Mugler e até mesmo algumas coisas do Versace.
Karoline Vitto: O meu conceito de beleza mudou ao longo do tempo, a gente primeiro recebe um conceito de beleza vindo da sociedade em que a gente é criado então eu acredito que para mim foi um processo. Nasci nos anos 90, recebi influências da televisão brasileira, das revistas e de tudo isso que você também deve ter recebido, e isso acaba moldando um pouco aquilo que você considera belo, né? Mas me mudei para cá (Londres) faz 5 anos e aos poucos fui me desligando de alguns desses conceitos. Depois de todo um processo, tanto como desconstrução pessoal quanto no meio acadêmico, através de pesquisa e de prática dentro do meu próprio trabalho, meu conceito de beleza mudou de algo que havia sido corpóreo para algo mais abstrato.Hoje em dia vejo a beleza muito mais como uma sequência de linhas, formas, volumes, proporções. Está muito mais relacionada a composição do que ao objeto inerente a essa beleza. Quando analiso, encontro beleza em um corpo, em uma foto, em um quadro, para mim são coisas muito similares. Encontro a beleza dentro da proporção e da composição dessas formas. Num processo anterior, a gente passa por toda essa educação em que a beleza está relacionada às influências patriarcais. Existiu esse primeiro momento na minha cabeça conforme fui crescendo e hoje em dia acredito que passei dessa página, pelo menos do ponto de vista lógico.
A beleza que transmito com meu trabalho é voltada para o olhar feminino, conscientemente tento quebrar esse padrão para que no meu trabalho a beleza não seja sexual, e sim relacionada a formas, proporções, volumes, composição. E que essa beleza seja tão extracorpórea, tão abstrata que desobjetifique esse corpo. Não tem um fim destinado ao homem - ao homem heteronormativo -, esse corpo tem um olhar destinado ao usuário e a quem quiser encontrar beleza nele. E acho que é dessa forma que ela - a beleza - permeia meu trabalho. É muito relacionada a trabalhar a composição, o peso das imagens, o balanço das cores. A maneira que crio sempre tem um corpo por trás, então essa roupa só existe se faz sentido para aquele corpo, e se a composição dessa imagem, como um todo, faz sentido enquanto imagem.
Maria Canepa: Quais são suas referências e qual sua relação com elas, elas te inspiram de maneira mais estética ou controversa?
Karoline Vitto: Boa parte da minha pesquisa é uma pesquisa pessoal, feita a partir de fotografias que produzi. É uma pesquisa primária que produzo para usar como referência. Mas aí minha pesquisa secundária passa por várias linguagens: fotógrafos, designers, escultores e tudo mais. Ultimamente alguns designers que têm me influenciado muito são Azzedine Alaia, Thierry Mugler e até mesmo algumas coisas do Versace.
Mas conforme mencionado, realmente preciso transmutar isso para adequar a estética, algo que acontece muito com esses designers. Olho pro final dos anos 80 início dos 90, e um pouco pro início dos anos 2000 também, e o que acontece muito nessa época é aquela estética da modelo.
Não tanto nos 80 porque ainda existia aquela mulher com um biotipo mais forte, mais atlética, mas depois vem a estética heroin chic, que é ridículo esse nome, representada por essa mulher com magreza exacerbada, frágil, que poderia até estar doente. Então acabo tendo muito que mudar a maneira como olho para essas imagens, o que tiro dessas referências é bem focado em produto ou silhueta. Digamos que eu vá olhar um vestido do Alaia; adoro a materialidade no trabalho dele, a maneira que ele trabalha os tricôs, as malhas finas, são perfeitos ao meu ver. Ele realmente esculpe o corpo da mulher e é isso que tento fazer só que mudando a mulher, usando das mesmas ferramentas que ele usava mas com outra “musa” na minha cabeça. Olho bastante para alguns fotógrafos e posso citar como preferida a Deborah Tuberville, apesar de achar ainda que o trabalho dela tenha um fundo sensual (visto que datado em outra época,), vejo esse foco no olhar da mulher para mulheres. Como mulher me refiro a corpos que se identificam como mulher, não sinto que tenha um filtro masculino no trabalho dela. Ela coloca as mulheres nesses ambientes que são salas de banho, piscinas, banheiros; locais em que realmente existe uma congregação dessas mulheres e elas estão em um estado “livre”, e ainda assim posando de maneira performática. Também olhei muito pro trabalho da Francesca Woodman, uma mulher depressiva que não achava seu trabalho bom o suficiente. Ela teve uma história bem trágica mas as fotografias dela são lindas, muito sensíveis, trabalhando com autorretratos que expõem muito uma vulnerabilidade do corpo e do ser. Um dos livros que li sobre ela mencionava como seu trabalho conta histórias sobre viver dentro desse corpo, isso me influenciou muito.
Outros fotógrafos que acabei olhando muito são Helmut Newton e Richard Avedon, e aí também entra a relação de transmutar as referências, porque olhavam para as mulheres de uma maneira diferente da Deborah e da Francesca. Muito mais sensual e voltados ao male gaze (olhar masculino) colocavam essas mulheres como musas, mas o que acho muito bonito em algumas dessas imagens são as composições, o uso do preto para desenhar as silhuetas e contornar o corpo, o que acaba provocando formas orgânicas, curvas. A maneira que o olhar dança pela foto é uma maneira muito bonita, apesar de muitas delas colocarem as mulheres numa posição hiperssexualizada.
Então para mim o que acontece é pescar um pouco dessas referências e juntar o que eu acho que faz sentido para mim e mastigar tudo isso, digerir para criar meu próprio trabalho.
Não tanto nos 80 porque ainda existia aquela mulher com um biotipo mais forte, mais atlética, mas depois vem a estética heroin chic, que é ridículo esse nome, representada por essa mulher com magreza exacerbada, frágil, que poderia até estar doente. Então acabo tendo muito que mudar a maneira como olho para essas imagens, o que tiro dessas referências é bem focado em produto ou silhueta. Digamos que eu vá olhar um vestido do Alaia; adoro a materialidade no trabalho dele, a maneira que ele trabalha os tricôs, as malhas finas, são perfeitos ao meu ver. Ele realmente esculpe o corpo da mulher e é isso que tento fazer só que mudando a mulher, usando das mesmas ferramentas que ele usava mas com outra “musa” na minha cabeça. Olho bastante para alguns fotógrafos e posso citar como preferida a Deborah Tuberville, apesar de achar ainda que o trabalho dela tenha um fundo sensual (visto que datado em outra época,), vejo esse foco no olhar da mulher para mulheres. Como mulher me refiro a corpos que se identificam como mulher, não sinto que tenha um filtro masculino no trabalho dela. Ela coloca as mulheres nesses ambientes que são salas de banho, piscinas, banheiros; locais em que realmente existe uma congregação dessas mulheres e elas estão em um estado “livre”, e ainda assim posando de maneira performática. Também olhei muito pro trabalho da Francesca Woodman, uma mulher depressiva que não achava seu trabalho bom o suficiente. Ela teve uma história bem trágica mas as fotografias dela são lindas, muito sensíveis, trabalhando com autorretratos que expõem muito uma vulnerabilidade do corpo e do ser. Um dos livros que li sobre ela mencionava como seu trabalho conta histórias sobre viver dentro desse corpo, isso me influenciou muito.
Outros fotógrafos que acabei olhando muito são Helmut Newton e Richard Avedon, e aí também entra a relação de transmutar as referências, porque olhavam para as mulheres de uma maneira diferente da Deborah e da Francesca. Muito mais sensual e voltados ao male gaze (olhar masculino) colocavam essas mulheres como musas, mas o que acho muito bonito em algumas dessas imagens são as composições, o uso do preto para desenhar as silhuetas e contornar o corpo, o que acaba provocando formas orgânicas, curvas. A maneira que o olhar dança pela foto é uma maneira muito bonita, apesar de muitas delas colocarem as mulheres numa posição hiperssexualizada.
Então para mim o que acontece é pescar um pouco dessas referências e juntar o que eu acho que faz sentido para mim e mastigar tudo isso, digerir para criar meu próprio trabalho.

Maria Canepa: No decorrer da História mulheres foram colocadas em um lugar desconfortável para ter uma imagem agradável diante da sociedade, você inverte essa lógica no seu trabalho, provocando o contrário. Como começou essa vontade de inversão?
Karoline Vitto: A vontade de inversão começou de maneira bem simples, quando comecei a fazer essa série de fotos, há uns 2 anos e meio atrás. Quando comecei a pesquisa estava no Brasil e tinha comprado um corset, tipo cinta modeladora. E acontece comigo um fenômeno muito estranho, que é quando volto pro Brasil, me afeto muito mais com as influências externas em relação a corpo. E vi várias meninas falando sobre essa peça para treinar a cintura, daí pensei “ah, vou testar também” e ele foi feito sob medida, então teoricamente deveria me servir, mas fui tentar vestir e foi impossível colocar aquilo, era muito apertado. Minha mãe e minha irmã precisaram me ajudar a vestir e quebrei até uma unha, precisei deitar na cama pro tal do corset entrar, e fiquei pensando “por que que eu estou fazendo isso? só porque eu queria uma cintura mais fina?”. Não precisava passar por aquilo, mas em todo caso peguei esse corset que tinha uma construção e materiais muito bons, botei na mala e voltei com ele para Londres, porque queria abrir para ver como era feito. Acabei deixando num canto, e então um dia resolvi vestir outra vez para tentar colocar sozinha e conforme eu tentava colocar meu corpo saia para fora dele, criando volumes que saltavam onde o corset ficava justo e onde eu não tinha conseguido fechar, e aquilo me chamou atenção.
Maria Canepa: Achei muito belo e libertador também que você escolhe expor de maneira evidente as partes do corpo as quais somos induzidas a acreditar que devem ser disfarçadas. Todas as suas escolhas de modelagem, material, acessórios estão alí para evidenciar o que nos é relegado a mostrar.
Karoline Vitto: Eu pensei “por que não posso explorar isso que está acontecendo aqui? É literalmente meu corpo saindo para fora dessa peça e o que será que isso quer dizer? por que estou tentando lutar para me encaixar em uma silhueta que não é a minha?” E as engrenagens começaram a se encaixar, passando para “e se eu provocasse isso?”. E se o meu empoderamento com meu próprio corpo for justamente o contrário, em vez de simplesmente aceitar meu corpo como ele é, eu começar a empurrar esses volumes para lugares que não são os convencionais? Porque sou assim e acho tão ok ter o corpo que você tiver, por que então não usar esse corpo como um material também, extrapolando a figura, a estética preestabelecida, criando uma outra estética? Surgiu dessa forma, relacionando isso com como as pessoas acabam costumeiramente alterando seus corpos para que se encaixem mais num padrão patriarcal. Tentei com meu trabalho alterar ou forçar esse corpo justamente para que ele criasse seu próprio padrão, sua própria silhueta e que essa silhueta fosse “não convencional”.
Maria Canepa: Me fala um pouco também sobre seu processo de modelagem, recortes e as joias corporais.
Karoline Vitto: Meu processo de modelagem passa justamente pelo corpo, então não consigo trabalhar direto com modelagem plana ou em cima do manequim tradicional, porque preciso saber onde é que essas formas vão extravasar e ser mais ou menos pressionadas. Costumo trabalhar com um manequim estofado, crio camadas de fibras e modelo no ferro. Assim consigo achatar os locais em que o corpo seria um pouco mais duro ou deixar mais fofo onde o corpo seria mais macio. Crio essas camadas sobrepostas, como se estivesse esculpindo meu manequim, para poder se assimilar mais com o aspecto do corpo mesmo, e aí sim consigo entrar com os elásticos e os materiais por cima, pressionando para ver quais áreas vão reagir a eles e quais não. E aí claro, dependendo do que faço pode ser que esse processo comece no manequim ou que esse processo comece no corpo. Então acaba sendo um processo bem experimental, onde vou para o papel, faço um teste e volto. Na verdade, se trata de um processo circular, ele vai e volta até eu ficar satisfeita com o resultado no corpo.
Maria Canepa: Os acessórios, materiais e peças também parecem estar ligados a um certo desconforto. Como surgiu o impulso de retratar esses corpos modificados, que dão essa impressão de estarem apertados e incômodos?
Karoline Vitto: A minha visão seria um corpo que escolheu se modificar de uma maneira que não é a maneira que a maioria dos corpos escolhe se modificar. Um corpo que escolheu enfatizar determinada área. Existem elásticos, alguns mais apertados e que parecem ser mais desconfortáveis e é porque a gente passa por tantos processos que nos apertam, prendem, tentam nos modificar e é sempre para que esse corpo fique com aquela silhueta ampulheta; e o corpo do meu trabalho é um corpo que escolheu subverter isso, então tudo bem se eu resolver passar por uma modificação, porque vai ser para que essa modificação dê o foco que eu quiser dar, e não o foco que os outros querem que eu dê. É muito uma crítica nesse sentido para mim.
E aí entra também a autonomia do usuário que enquanto imagem eu escolho, ou essas imagens que provoquem mais ou menos curvas. Quando essas imagens deixam de ser imagens e viram produto mesmo, os elásticos têm reguladores para que seja possível mensurar e apertar o quanto quiser.
Karoline Vitto: A vontade de inversão começou de maneira bem simples, quando comecei a fazer essa série de fotos, há uns 2 anos e meio atrás. Quando comecei a pesquisa estava no Brasil e tinha comprado um corset, tipo cinta modeladora. E acontece comigo um fenômeno muito estranho, que é quando volto pro Brasil, me afeto muito mais com as influências externas em relação a corpo. E vi várias meninas falando sobre essa peça para treinar a cintura, daí pensei “ah, vou testar também” e ele foi feito sob medida, então teoricamente deveria me servir, mas fui tentar vestir e foi impossível colocar aquilo, era muito apertado. Minha mãe e minha irmã precisaram me ajudar a vestir e quebrei até uma unha, precisei deitar na cama pro tal do corset entrar, e fiquei pensando “por que que eu estou fazendo isso? só porque eu queria uma cintura mais fina?”. Não precisava passar por aquilo, mas em todo caso peguei esse corset que tinha uma construção e materiais muito bons, botei na mala e voltei com ele para Londres, porque queria abrir para ver como era feito. Acabei deixando num canto, e então um dia resolvi vestir outra vez para tentar colocar sozinha e conforme eu tentava colocar meu corpo saia para fora dele, criando volumes que saltavam onde o corset ficava justo e onde eu não tinha conseguido fechar, e aquilo me chamou atenção.
Maria Canepa: Achei muito belo e libertador também que você escolhe expor de maneira evidente as partes do corpo as quais somos induzidas a acreditar que devem ser disfarçadas. Todas as suas escolhas de modelagem, material, acessórios estão alí para evidenciar o que nos é relegado a mostrar.
Karoline Vitto: Eu pensei “por que não posso explorar isso que está acontecendo aqui? É literalmente meu corpo saindo para fora dessa peça e o que será que isso quer dizer? por que estou tentando lutar para me encaixar em uma silhueta que não é a minha?” E as engrenagens começaram a se encaixar, passando para “e se eu provocasse isso?”. E se o meu empoderamento com meu próprio corpo for justamente o contrário, em vez de simplesmente aceitar meu corpo como ele é, eu começar a empurrar esses volumes para lugares que não são os convencionais? Porque sou assim e acho tão ok ter o corpo que você tiver, por que então não usar esse corpo como um material também, extrapolando a figura, a estética preestabelecida, criando uma outra estética? Surgiu dessa forma, relacionando isso com como as pessoas acabam costumeiramente alterando seus corpos para que se encaixem mais num padrão patriarcal. Tentei com meu trabalho alterar ou forçar esse corpo justamente para que ele criasse seu próprio padrão, sua própria silhueta e que essa silhueta fosse “não convencional”.
Maria Canepa: Me fala um pouco também sobre seu processo de modelagem, recortes e as joias corporais.
Karoline Vitto: Meu processo de modelagem passa justamente pelo corpo, então não consigo trabalhar direto com modelagem plana ou em cima do manequim tradicional, porque preciso saber onde é que essas formas vão extravasar e ser mais ou menos pressionadas. Costumo trabalhar com um manequim estofado, crio camadas de fibras e modelo no ferro. Assim consigo achatar os locais em que o corpo seria um pouco mais duro ou deixar mais fofo onde o corpo seria mais macio. Crio essas camadas sobrepostas, como se estivesse esculpindo meu manequim, para poder se assimilar mais com o aspecto do corpo mesmo, e aí sim consigo entrar com os elásticos e os materiais por cima, pressionando para ver quais áreas vão reagir a eles e quais não. E aí claro, dependendo do que faço pode ser que esse processo comece no manequim ou que esse processo comece no corpo. Então acaba sendo um processo bem experimental, onde vou para o papel, faço um teste e volto. Na verdade, se trata de um processo circular, ele vai e volta até eu ficar satisfeita com o resultado no corpo.
Maria Canepa: Os acessórios, materiais e peças também parecem estar ligados a um certo desconforto. Como surgiu o impulso de retratar esses corpos modificados, que dão essa impressão de estarem apertados e incômodos?
Karoline Vitto: A minha visão seria um corpo que escolheu se modificar de uma maneira que não é a maneira que a maioria dos corpos escolhe se modificar. Um corpo que escolheu enfatizar determinada área. Existem elásticos, alguns mais apertados e que parecem ser mais desconfortáveis e é porque a gente passa por tantos processos que nos apertam, prendem, tentam nos modificar e é sempre para que esse corpo fique com aquela silhueta ampulheta; e o corpo do meu trabalho é um corpo que escolheu subverter isso, então tudo bem se eu resolver passar por uma modificação, porque vai ser para que essa modificação dê o foco que eu quiser dar, e não o foco que os outros querem que eu dê. É muito uma crítica nesse sentido para mim.
E aí entra também a autonomia do usuário que enquanto imagem eu escolho, ou essas imagens que provoquem mais ou menos curvas. Quando essas imagens deixam de ser imagens e viram produto mesmo, os elásticos têm reguladores para que seja possível mensurar e apertar o quanto quiser.
Maria Capena: É interessante também que embora as suas criações sejam super contemporâneas elas claramente poderiam ocupar outros tempos até mesmo no passado. É como se você tivesse conseguido contar uma História que foi negada ao corpo feminino.
Karoline Vitto: Uma coisa que permeou muito o meu trabalho sempre foi esse conceito male gaze porque justamente o corpo da mulher nunca foi protagonista, nunca pôde contar a própria história e nunca pôde ocupar esse lugar de autor. O olhar nunca foi voltado para nós, sempre foi direcionado ao olhar do homem heteronormativo, então o objetivo que eu tinha com meu trabalho era mudar um pouco disso, dar espaço para esse corpo, para esse olhar.
Maria Canepa: Uma das coisas que mais me tocou foi o fato dele ser sexy sem ceder à imagens propostas por olhares masculinos, ainda mais o corpo gordo feminino, por diversas vezes observei na minha trajetória com meu corpo e em trajetórias de outras mulheres gordas, uma necessidade de autossexualização para se afirmar como um corpo apto a sexualidade, esse lugar que muitas vezes é negado ou afastado de nós. No seu trabalho isso é abordado distante desse estereótipo. Você sentiu essa necessidade de transmutar o lugar-comum da imagem do corpo gordo?
Karoline Vitto: Existem dois momentos. Primeiro tive realmente essa intenção de sair do lugar comum e acredito ser super válido e necessário que os mais variados corpos ocupem os mais variados espaços. Esse espaço também é um espaço sexual, sabe? É uma narrativa que precisa existir e todo esse discurso entra na conversa sobre body positive. Enquanto falamos sobre não objetificar o corpo da mulher precisamos falar sobre todos os corpos dessas mulheres. Por isso é válido que haja esse discurso do “empoderamento” da mulher gorda se ver como uma mulher sexy, uma mulher sexual. É um caminho que precisa acontecer para ser quebrado, para que a partir do momento em que todos esses corpos possam ser vistos como corpos que podem ocupar todos esses espaços, aí sim mulheres vão ter autoria para dizer “tá, por que que eu preciso me sexualizar para entender o meu valor ou para me encontrar como um corpo que deve ser representado e tudo mais?”.
Acredito que o processo é muito individual, pelo qual me identifiquei, e foi isso que quis fazer com o meu trabalho, demonstrando o corpo de uma maneira mais anatômica, buscando enxergar a beleza como uma composição. Tive todo o processo de voltar para essa composição, olhar o corpo de uma forma mais serena. E sim muitas pessoas falam que o trabalho acaba sendo sensual. Acaba tendo essa conotação muito subjetiva, e um dos meus objetivos realmente foi tentar ao máximo que isso acontecesse. Nossos olhos foram treinados de uma maneira então é um processo contínuo, você tem que sempre se policiar, sempre sempre sempre questionar o que você está fazendo para continuar produzindo algo que quebre esse padrão. Meu objetivo foi tentar desobjetificar esse corpo.
Maria Canepa: Como você imagina que será esse avanço desses corpos minoritários nos próximos anos? Esse avanço estético em relação a gordofobia, a supervalorização de corpos magérrimos e na maioria brancos. Nos últimos anos tivemos avanços velados em relação a corpos marginalizados nas mídias. Como você vê isso?
Karoline Vitto: Por exemplo, a minha interpretação pessoal sobre concursos de beleza; deveriam existir? Digamos que provavelmente não, a maioria das pessoas deveriam concordar que não. Mas eles existem e se existem, quem que nós vamos colocar lá dentro? Deveríamos colocar todo mundo lá dentro. Porque eu quero que as meninas gordas, indígenas, negras, asiáticas, cadeirantes e trans se sintam representadas. Se é para discutir beleza eu quero que todos se sintam representados. A partir do momento em que todos estão sendo representados e todos estão dentro do mesmo círculo, agora está na hora da gente acabar com os concursos de beleza. Acredito que a partir do momento que todos estão incluídos nessa narrativa - e eu peço desculpa se esqueci de citar algum grupo, alguma minoria que talvez se sinta excluída - a partir do momento em que todo mundo faz parte dessa roda aí sim não há mais necessidade dela existir de jeito nenhum.
Maria Canepa: Para finalizar, uma pergunta um pouco mais lúdica, você tem algum tipo de ritual que desenvolveu para se conectar melhor com seu corpo?
Karoline Vitto: O ritual que tenho para me reconectar é me fotografar mesmo, tanto por trabalho quanto por diversão. É uma coisa que me vejo fazendo por muito tempo ainda porque adoro explorar o movimento que o corpo tem, as formas que o corpo vai produzir com a luz x ou y. Realmente explorar a imagem que o corpo provoca, sabe? Gosto muito, faço isso com roupa ou sem roupa e acaba sendo uma maneira de me conectar. E produzir essas fotos lá no início do meu trabalho e continuar fazendo elas foi algo libertador e que mudou muito muito a relação que eu tenho com meu próprio corpo.
Karoline Vitto: Uma coisa que permeou muito o meu trabalho sempre foi esse conceito male gaze porque justamente o corpo da mulher nunca foi protagonista, nunca pôde contar a própria história e nunca pôde ocupar esse lugar de autor. O olhar nunca foi voltado para nós, sempre foi direcionado ao olhar do homem heteronormativo, então o objetivo que eu tinha com meu trabalho era mudar um pouco disso, dar espaço para esse corpo, para esse olhar.
Maria Canepa: Uma das coisas que mais me tocou foi o fato dele ser sexy sem ceder à imagens propostas por olhares masculinos, ainda mais o corpo gordo feminino, por diversas vezes observei na minha trajetória com meu corpo e em trajetórias de outras mulheres gordas, uma necessidade de autossexualização para se afirmar como um corpo apto a sexualidade, esse lugar que muitas vezes é negado ou afastado de nós. No seu trabalho isso é abordado distante desse estereótipo. Você sentiu essa necessidade de transmutar o lugar-comum da imagem do corpo gordo?
Karoline Vitto: Existem dois momentos. Primeiro tive realmente essa intenção de sair do lugar comum e acredito ser super válido e necessário que os mais variados corpos ocupem os mais variados espaços. Esse espaço também é um espaço sexual, sabe? É uma narrativa que precisa existir e todo esse discurso entra na conversa sobre body positive. Enquanto falamos sobre não objetificar o corpo da mulher precisamos falar sobre todos os corpos dessas mulheres. Por isso é válido que haja esse discurso do “empoderamento” da mulher gorda se ver como uma mulher sexy, uma mulher sexual. É um caminho que precisa acontecer para ser quebrado, para que a partir do momento em que todos esses corpos possam ser vistos como corpos que podem ocupar todos esses espaços, aí sim mulheres vão ter autoria para dizer “tá, por que que eu preciso me sexualizar para entender o meu valor ou para me encontrar como um corpo que deve ser representado e tudo mais?”.
Acredito que o processo é muito individual, pelo qual me identifiquei, e foi isso que quis fazer com o meu trabalho, demonstrando o corpo de uma maneira mais anatômica, buscando enxergar a beleza como uma composição. Tive todo o processo de voltar para essa composição, olhar o corpo de uma forma mais serena. E sim muitas pessoas falam que o trabalho acaba sendo sensual. Acaba tendo essa conotação muito subjetiva, e um dos meus objetivos realmente foi tentar ao máximo que isso acontecesse. Nossos olhos foram treinados de uma maneira então é um processo contínuo, você tem que sempre se policiar, sempre sempre sempre questionar o que você está fazendo para continuar produzindo algo que quebre esse padrão. Meu objetivo foi tentar desobjetificar esse corpo.
Maria Canepa: Como você imagina que será esse avanço desses corpos minoritários nos próximos anos? Esse avanço estético em relação a gordofobia, a supervalorização de corpos magérrimos e na maioria brancos. Nos últimos anos tivemos avanços velados em relação a corpos marginalizados nas mídias. Como você vê isso?
Karoline Vitto: Por exemplo, a minha interpretação pessoal sobre concursos de beleza; deveriam existir? Digamos que provavelmente não, a maioria das pessoas deveriam concordar que não. Mas eles existem e se existem, quem que nós vamos colocar lá dentro? Deveríamos colocar todo mundo lá dentro. Porque eu quero que as meninas gordas, indígenas, negras, asiáticas, cadeirantes e trans se sintam representadas. Se é para discutir beleza eu quero que todos se sintam representados. A partir do momento em que todos estão sendo representados e todos estão dentro do mesmo círculo, agora está na hora da gente acabar com os concursos de beleza. Acredito que a partir do momento que todos estão incluídos nessa narrativa - e eu peço desculpa se esqueci de citar algum grupo, alguma minoria que talvez se sinta excluída - a partir do momento em que todo mundo faz parte dessa roda aí sim não há mais necessidade dela existir de jeito nenhum.
Maria Canepa: Para finalizar, uma pergunta um pouco mais lúdica, você tem algum tipo de ritual que desenvolveu para se conectar melhor com seu corpo?
Karoline Vitto: O ritual que tenho para me reconectar é me fotografar mesmo, tanto por trabalho quanto por diversão. É uma coisa que me vejo fazendo por muito tempo ainda porque adoro explorar o movimento que o corpo tem, as formas que o corpo vai produzir com a luz x ou y. Realmente explorar a imagem que o corpo provoca, sabe? Gosto muito, faço isso com roupa ou sem roupa e acaba sendo uma maneira de me conectar. E produzir essas fotos lá no início do meu trabalho e continuar fazendo elas foi algo libertador e que mudou muito muito a relação que eu tenho com meu próprio corpo.








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