ENTREVISTA —
IVI MAIGA BRUMIENKO


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por Regiane Teixeira










Com ascendência russa, Ivi nasceu na Zona Leste da Cidade de São Paulo. Antes de se dedicar completamente à fotografia autoral, trabalhou durante anos como figurinista. Nos últimos anos talvez tenha se tornado a maior “documentarista” da cena jovem clubber e punk da cidade de São Paulo, alçando vôos também para outros países como Argentina, Colômbia e Reino Unido - registrando também essas cenas locais.

Estranhamente, Ivi conta apenas com um artigo sobre seu trabalho artístico, escrito pelo pesquisador Felipe Carvalho para o site Freak Market em junho deste ano. Essa entrevista para a Fort é uma oportunidade de conhecer melhor o universo da fotógrafa.

Para ilustrar essa conversa Ivi fez um recorte especial de seu trabalho documental. A artista focou em registros de mulheres presentes na cena da música independente. Com esse sobrenome meio “bruxo”, Ivi nos conta sobre o feitiço da fotografia...









                             


Regiane Teixeira: Qual foi a última foto que você tirou?

Ivi: Foi da Cashu tocando num lugar novo no centro ontem. Na verdade, essa foi a penúltima. A última mesmo acho que foi da porta do banheiro desse lugar.

R: Eu sei que a fotografia sempre esteve presente de alguma maneira na sua vida. Pode falar um pouco sobre isso?

Ivi: É meio engraçado o jeito que comecei a fotografar. Quando meu pai morreu em 2016, eu fui até a casa dos meus pais pra ajudar minha mãe com a organização das coisas. Meu pai era acumulador, beirando o patológico, então tinha tralha pra todo lado, e eu sabia que minha mãe não teria a menor condição emocional e/ou paciência para separar o que era lixo mesmo e o que poderia ter algum valor monetário ou afetivo.

Eu fiquei fuçando ali naquele monte de coisa e encontrei a câmera de filme que ele usava pra tirar foto da família quando éramos crianças. O que me despertou mais curiosidade é que a câmera estava com um filme inacabado. Levei ela comigo pra levar o filme revelar e aí passei a usá-la pra tirar foto nos rolês que eu dava.

Comecei a sair muito essa época, agora vejo que era até uma maneira de lidar com o luto e a falta que sentia do meu pai. Talvez fugindo um pouco de ficar sozinha e ter que encarar emoções difíceis.

Com o tempo eu fiquei me questionando sobre quando comecei a gostar de fotografia e lembrei que quando tinha 15 anos meus pais me deram minha primeira camerinha, uma bem tosca amarela (que encontrei também no meio do entulho mas que infelizmente não estava mais funcionando). Tirei algumas fotos com ela, mas foi bem na época que todo mundo começou a ter câmera digital e os celulares ainda não tinham câmera. Eu meio larguei de mão na época. 

Também percebi  relendo meus diários que eu sempre colocava como meta de vida tirar mais fotografia, ou estudar fotografia, coisas assim. Mas eu não tinha me ligado de nada disso até começar a andar com a câmera em todo lugar e ir tirando foto. Nunca tinha ligado esses pontos. Eu não estudei fotografia, sinto falta de ter conhecimento técnico, mas acho que rolou na hora que tinha que ser e sinto que é meio um presente da vida depois que meu pai foi embora. Assim, uma compensação esquisita.

R: O seu trabalho é sobre o que você vive. E a noite é grande parte disso. Como vê esse tema e a diferença entre os meios pelos quais você circula, do punk até a música eletrônica?

Ivi: Sim, até por essa maneira de começar a fotografar, eu sinto que é um álbum de família. Ou eu queria que fosse.  Foi por isso que surgiu o adultodeboa, que é meu projeto de longuíssimo prazo de fotos de gente que eu amo ou admiro.

Com o tempo comecei a fazer alguns trabalhos de moda, ou cobrir festas que não eram de amigos, daí criei um distanciamento afetivo e um olhar mais “profissional”, digamos assim, mas sempre dentro da linguagem que eu gosto e que também só fui sacar bem recentemente, com a experiência mesmo. Dentro da fotografia eu não diferencio se estou tirando foto de um show ou de algum amigo discotecando, por exemplo. Se é role punk ou se é rave. Porque tudo isso faz parte do que eu vivo no meu dia a dia. Eu me sinto parte de grupos distintos e acho que isso é bom. Talvez a conexão entre esses mundos seja mesmo a música.

R: Existe algo que você considera difícil quando pensa em fotografar noite/festas? O que te chama atenção?

Ivi: É difícil quando eu acho que a galera não está se divertindo, ou quando eu mesma não estou. Eu presto muita atenção nas pessoas, muita mesmo. Talvez a fotografia seja até essa ferramenta pra canalizar positivamente essa neurose. É um escudo protetor, ao mesmo tempo em que é uma porta de acesso. Também presto muita atenção em ambientes degradados porque a gente vive num mundo degradado, um planeta morrendo. Me interessa a relação que estabelecemos com o meio para que possamos sobreviver nele. A ideia do projeto sociallixo vem daí, socialite do lixo (risos).

R: O que mudou no seu olhar desde que você começou?

Ivi: Racionalmente eu sempre acho que nada mudou, mas quando vejo os primeiros filmes que tirei, sei que sim. Acho que aprendi a ser um pouco mais “certeira” dentro do que é o mais legal da fotografia analógica, que é não saber imediatamente como a imagem vai ficar. Com a experiência eu aprendi mais sobre o ISO do filme, abertura da câmera, essas coisas mais técnicas, então agora quando eu pego um filme e percebo que aproveito melhor, erro menos. Ao mesmo tempo, tento ao máximo manter uma postura despretensiosa diante da fotografia porque parte do que me comove e é exatamente isso.

Minha dificuldade de usar câmera profissional vem um pouco daí também, um receio de que profissionalizar demais estrague a “tosquice”, que é meu charme (risos). Mas eu sei também que isso é besteira, é questão de amadurecimento mesmo.

R: Qual sua maior referência musical no momento?

Ivi: Eu me tornei meu pior pesadelo da adolescência: a pessoa eclética. Eu escuto de tudo mesmo. Esse ano, segundo os metadados que são o frisson das redes em dezembro, o que eu mais ouvi foi Brian Jonestown Massacre, Wire e Sun City Girls. Ah! e claro, Legião Urbana, forever. Bem “indiezinha” beirando os quarenta, mas engatinhando nos ritmos eletronics.

R: Como vê a presença feminina na noite e na cena musical do Brasil hoje?

Ivi: Vejo como uma força incontrolável, graças à Deusa. Hahaha, tô brincando, mas em resumo é isso. Eu vejo como uma presença constante em todos os espaços possíveis e em todas as pontas do que é a cena que frequento. Vejo como produtoras, como DJs, como cantoras, como segurança na porta da balada, como donas da porra toda (alô mambas, alô auta <3)*. E, ainda assim, vejo que em muitos circuitos dentro desse cenário existe a mentalidade masculina castradora patriarcal que inferioriza as mulheres. A gente sabe que muita festa, muito festival, ainda escala mulheres com pensamento de cota. Apesar de todos os espaços conquistados, é uma luta constante, uma guerra em curso.

R: Você acha que existe uma perspectiva feminina nas suas fotos?

Ivi: É complicado falar em masculino e feminino em pleno anos 2020, né? Mas pensando enquanto polaridade, pensando em como fui socializada, acho que sim. Minhas fotos surgem de observação, carinho e cuidado que eu tenho pelos outros, e essas são características que associamos com feminino. Me sinto bastante dentro de alguns clichés de feminilidade e eu me sinto confortável com eles na verdade. Porque entendo o que eles significam e os uso como potencialidades. A gente vive em um mundo de homens, moldado por homens, para outros homens. Esse mundo está morrendo, e eu estou aqui para registrar.


*aqui a artista se refere às plataformas Mamba Negra e AUTA [1]