Maria Isabel Rueda


12 de agosto de 2020

Os questionamentos ao explorar o invisível através de lentes, em reflexos que não podem ser observados no espelho. Uma reflexão do intangível nas fotografias de Maria Isabel Rueda. Conversamos com a fotógrafa colombiana para entender a cena musical dos anos 90 e 2000 a qual retratou, e como foi documentar a juventude gótica latinoamericana, entre outros projetos.


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Entrevista Cassia Tabatini 
Fotografia Maria Isabel Rueda


Cassia Tabatini: Quando você começou a fotografar, como era a cena jovem nos anos 90 na Colômbia? Você fazia parte dessa cena? Descobri que seu primeiro projeto era em raves, na cena eletrônica. Como você se aproximou dos góticos?

Maria Isabel Rueda: Quando eu tinha 12 anos, meus pais me deram uma câmara Kodak instamatic, com aqual comecei a tirar minhas primeiras fotos. A maioria eram retratos de meus irmãos na sala ou no mar, pois crescemos em frente ao mar do Caribe, em Cartagena. Toda a minha adolescência aconteceu nos verões de praia onde fotografei meu grupo de amigos. Meus primeiros empregos em fotografia começaram quando comecei a estudar artes plásticas na universidade. Meu namorado, Maurício, me deu uma Polaroid com cartuchos coloridos e em preto e branco. Então, resolvi começar a fotografar amigos da universidade que me pareciam atraentes, porque os senti com uma beleza particular, fora do comum. Essas imagens foram o antecedente da primeira série de retratos chamada Reverse, uma fotografia analógica 35mm colorida que registra um pouco do que acontecia na cena eletrônica dos anos 90 em Bogotá. Em geral, eram caras que ele conhecia em festas ou amigos que se vestiam de maneira particular ao comprar roupas, talvez copiando as modelos de uma revista que nos influenciou muito na época chamada The Face. Adaptamos essa moda à nossa versão colombiana.
Eu tinha viajado para Nova York naquela época com alguns amigos. Estávamos nas famosas festas que eles tinham no Limelight, que eles descrevem no filme Party Monster, Talvez nos deixaram entrar porque estivessem completamente fora de moda e por serem colombianos. A fila para entrar era interminável e sempre havia alguns personagens andróginos nas plataformas Buffalo que, para nós, naquela epoca eram alienígenas fabulosos e eles sempre nos escolheram para entrar. Acho que não éramos iguais a ninguém naquele lugar! Estávamos completamente fora de moda e eles gostavam disso.

A cena eletrônica dos anos noventa em Bogotá foi muito influenciada por um grupo de DJs franceses amigos de colombianos que juntos começaram a fazer as famosas raves ou festas menores. Bogotá veio de uma cena de rock forte, com bares muito famosos como Barbarie, Barbie, Vena arteria, TVG, Kalimán, Membrana, Fangoria, Vertigo CampoElías, etc. Uma cena forte com shows ao vivo, então a cena eletrônica foi uma grande tumulto que mudou radicalmente a noite e as drogas. Para sobreviver trabalhei em uma revista de moda e rock muito popular, e quase a única na epoca que era só sobre música, se chamava Shock. Comecei a gravar todos os shows de todos os gêneros musicais que passaram por Bogotá e alguns grandes festivais de hip hop, metal e rock para o parque. Retratei e cobri toda a cena musical do final dos anos 1990 e início dos anos 2000 para aquela revista.



           

Para minha tese na Universidade fiz uma série bastante conhecida na epoca que se intitulava: Vampiros na Savana, uma fotografia analógica em preto e branco que retrata mulheres góticas na savana de Bogotá. O título se refere a um filme animado cubano chamado Vampiros em Havana, e é uma referência ao meu passado tropical, porque esses vampiros eram do litoral, saíram em plena luz do sol e tinham um sotaque marcante. Usaram um produto chamado Vampisol que permitia que se expusessem à luz do sol. Decidi que meus vampiros eram mulheres que retratava em plena luz do sol, em palcos dentro da cidade que faziam referência ao imaginário de capas de álbuns góticos, com florestas, castelos, naturezas mortas etc. Uma referência mais nórdica que fascinou a cena gótica de Bogotá.

Minha ideia era fazer de Bogotá uma cidade que parecesse a capa dos discos que os retratados admiravam em enquadramentos. As meninas foram conhecendo-os na rua. Imediatamente tirei as fotos em um local próximo, porque naquela época não havia telefones celulares e em Bogotá quase ninguém na rua compartilha o número do telefone com você por questão de segurança. Peguei um rolo de filme para cada retratado. A ideia por trás de tudo isso era questionar a impossibilidade do aparato fotográfico de registrar o intangível, e a metáfora do vampiro que não se reflete em espelhos. Como as câmeras analógicas funcionam em espelhos, elas foram a metáfora perfeita para falar sobre como registrar conceitualmente o invisível.


Então a proposta tinha nuances diferentes, por um lado falava de música e moda e propunha uma legião de vampiras que passaram a questionar a definição do visível a partir da fotografia. Revelei essas fotos na casa de um amigo fotógrafo mais velho, Victor Robledo, que me ensinou muito sobre fotografia. Victor transformou sua casa em um grande quarto escuro onde não nada gastamos ampliando as fotos. Essas imagens foram exibidas em várias partes do mundo e a partir daí comecei minha própria revista independente chamada Tropical Goth.

CT: Nessa época, não encontrávamos informações na internet ou social media. Como era sua pesquisa e referências? E como você se lembra da juventude consumindo e criando música e style?

MIR: Naquela época a maior influência era a MTV latina, que até passou a visualizar todo o cenário do que chamavam de música alternativa. Todos os nossos amigos com quem íamos aos bares estavam criando. Havia vários shows ao vivo. Os finais de semana (a partir de quarta-feira) foram como uma grande festa e nós vivíamos esperando a noite para sair para dançar, ouvir música e nos vestirmos. Como falei, víamos revistas importadas que vinham da Inglaterra. Minhas favoritas eram The Face e RayGun, porque tinham uma tipografia experimental que eu gostava muito. O que fizemos foi adaptar todas essas imagens às nossas versões: caseiras e através de roupas usadas, que agora se chamam vintage, e criar nossas próprias adaptações do que imaginávamos que estava acontecendo no mundo. Nos anos 90, eu estava morando em Londres por alguns meses e viajando por toda a Europa com meu namorado. Visitamos lugares lendários na cena de Manchester, como La Hacienda, e assistimos diversos shows grandes como David Bowie, Radiohead, Frank Black to Tricky. Então tive a oportunidade de ver muitos grupos ao vivo. Criamos novas músicas que compartilhamos com amigos. Meu mundo girava em torno da música naquela época, eu era até tecladista de um grupo de rock: o Radiosónica.

A informação foi trazida por quem viajava e no centro de Bogotá havia algumas lojas de discos, na Rua 19. Lembro-me de uma que acho que se chamava Mordiscos onde se encomendava discos e traziam-nos de outros países. Também me lembro de um personagem lendário que sabia muito sobre música e pioneira em locais de música no centro de Bogotá chamados Dr. Rock. Sabia-se o que acontecia no mundo compartilhando informações com pessoas que viajavam e traziam suas descobertas. Mas aos poucos foi se criando uma forte cultura do rock em espanhol onde as referências já eram uma mistura de influências estrangeiras com as nossas. É o famoso boom da cena alternativa em Bogotá que é sustentado por shows em pequenos bares alternativos e com um show gigante chamado Rock al Parque no qual grupos latino-americanos e estrangeiros que nunca haviam vindo ao país puderam ser vistos de graça, porque não vieram a Colômbia para jogar qualquer grupo famoso. O concerto foi gratuito, sendo precedido do Concerto de concertos onde Miguel Mateos encerrou. Tive também a oportunidade de ir ao Rock in Rio, que era uma grande referência latino-americana na época, acompanhada pela nossa amiga Márcia, que conseguiu entrevistar Kurt Cobain para sua revista independente Backstage. Todas as informações foram compartilhadas com amigos, fitas cassete foram copiadas e os shows foram gravados em VHS até os CDs aparecerem. A cena eletrônica trouxe de volta o acetato e os toca-discos.




CT: Conheci seu trabalho uma vez visitando a Photographers Gallery, em Londres, acho que foi por volta de 2005. Como isso aconteceu?

MIR: A Photographers Gallery, decidiu fazer uma exposição de fotografia colombiana: mais uma vez, com sentimento. A fotografia contemporânea da Colômbia. A curadora Camilla Brown ficou muito interessada nas minhas fotos de Vampiros na Savannah, e ela queria muito que a exposição fosse em Londres, onde havia uma cena gótica forte. Ela queria mostrar um pouco mais da minha proposta sob a perspectiva do gótico tropical. Ela até me convidou mais tarde para a PhotoEspaña, onde mostrou o reverso e os vampiros da série Savannah juntos e me convidou para revisar todo um arquivo histórico de fotografia na Inglaterra, relacionado ao paranormal. As primeiras imagens de médiuns e ectoplasmas onde foram registrados fenômenos psíquicos, o que é algo que me interessa muito.

CT: Você pode contar pra gente, um pouco sobre sua residência em Cuba, como era o movimento jovem lá, na época criando alguma analogica aos tempos políticos e social?

MIR: Ganhei uma bolsa de residência por dois meses em Havana, em um espaço de Residência Artística chamado Batiscafo. Eu tinha conseguido registrar uma boa parte da cena gótica mexicana, que me interessou muito. É uma série intitulada: Nova Poluição. Desta vez foi um registro de góticos em sua maioria da cena queer de um mercado de rua na Cidade do México chamado el Chopo. Lá, em 2009, houve um grande movimento de góticos e a compra e venda de música, filmes e roupas na Cidade do México. Queria retratar homens acima de tudo, porque o México é um país muito machista e a música gótica tem uma referência visual muito feminina. Então os cabelos longos, as saias longas, a maquiagem e os pancakes brancos maquiados sobre traços indígenas foi uma imagem forte que sintetizou a união de mundos muito distantes que foram adaptados através da música e da moda. Eu tinha acabado de fazer o projeto no México quando fui a Havana. Cuba estava em um período intermediário, quandi começaram a se abrir um pouco para o mundo capitalista. Em Havana não havia bares ou discotecas para beber um drink, então os jovens decidiram se encontrar em uma longa rua chamada G ou Calle de los presidentes que culmina no calçadão à beira-mar. 

Eu, um artista argentino e outro boliviano estávamos hospedados na Casa de Las Américas, bem perto deste lugar. Saíamos à noite com um grupo de artistas do ISA, da University of Arts e alguns amigos do coletivo OMNI. Então eles nos convidaram nos finais de semana à noite para aquela rua onde jovens góticos, emos, da cena hip hop, e de várias tendências musicais se reuniam para beber cerveja e conversar até de madrugada. Sempre me perguntei como eles conseguiam as roupas e, conversando com eles, me disseram que seus familiares que moravam nos EUA as mandavam para eles. Naquela época em Cuba era muito difícil o acesso a internet, pois só existia o serviço em hotéis, onde os cubanos não eram permitidos, e nas universidades onde se tinha que solicitar atendimento por tempo limitado. Me pareceu muito interessante como a informação vazava.
Em um regime anticapitalista, a busca pela moda e pela música cruzou fronteiras. Eu ficava sentado um pouco à noite e pedia aoscaras que me deixassem fotografá-los. Eu fiz retratos há muito tempo, então foi muito fácil para mim me aproximar e conversar com eles, quase todo mundo queria ser retratado. Mostrei esses retratos junto com um arquivo de vídeo das câmeras de segurança que eles colocaram no calçadão monitorando a todos constantemente.

Nesse material que comprei ilegalmente, a câmera de vigilância registrava cenas de sexo clandestino com as ondas do mar explodindo nas costas de casais ou grupos de jovens, enquanto cenas de sexo oral ocorriam no espaço público do Havana Malecón. Nunca entendi por que em uma cidade tão protegida como era Havana naquela época, o governo admitia esse tipo de permissividade pública nas ruas dos presidentes. Ironias da vida.



















CT: Onde mais você viveu e trabalhou? Pode nos contar um pouco sobre México, Londres e Nova York?

MIR: Já morei e viajei por muitos lugares. E pude ver o mundo fazendo projetos espirituais e viagens. Viajei de barco pelo Amazonas até chegar a Iquitos, procurando o Barco Fitzcarraldo e bebendo Ayahuasca. Vivi em um Ashram no norte da Índia e viajei todo o país de carro até chegar à utópica cidade de Auroville. Também viajei de barco pelo Nilo no Egito visitando todos os seus templos, e estive na pedra de Uluru quando visitei a Austrália. Viajei de mochilão pela Europa por três vezes quando era adolescente. Viajei grande parte da América Latina via terrestre. Morei na Bolívia e no Peru, e viajei muito do litoral do Brasil do Espírito Santo ao Rio de Janeiro. Fiquei quase seis meses no Equador com Mario, meu ex-companheiro. Nós morávamos com um grupo de surfistas, e lá tive a oportunidade de registrar uma comunidade queer na cidade de Engabao. Viajei por grande parte do meu país. Gosto muito de viajar e me fixar por muito tempo em lugares diferentes. Minha vida tem sido assim. Agora moro em Puerto Colombia, no Caribe colombiano, onde estou construindo uma pequena casa no meio de um grande jardim.



CT: Qual a diferença para você, na juventude desse passado não tão distante, de agora? 

MIR: Minha geração foi uma geração que enfrentou o HIv e ainda viveu sem medo. O contato foi físico e era uma grande aventura conhecer alguém que você queria. Certas habilidades foram desenvolvidas para que você pudesse ficar sem planejar com alguém que gostasse ou quisesse ver, e você passava muito tempo nas ruas tentando promover esse encontro. A música que você ouviu definiu você, e acessá-la foi um luxo. Em 2000 comecei a frequentar a cena queer em Bogotá. Um grupo de amigos criou bairros de bares: Magnolia um bar só para mulheres, e Lorca, um café bar, loja de roupas, uma espécie de comunidade queer com quem compartilhei muitas das minhas noites. Foi a minha passagem do mundo do rock para a cena queer de Bogotá. Saí de lá porque meu melhor amigo, Wil, que veio da cena gay punk de Bogotá e que compartilhou comigo muitas das melhores noites da primeira década de 2000, morreu de AIDS. E eu pensei que não fazia mais sentido morar em Bogotá sem ele. Então conheci Mario e, por amor, deixei a cidade para ir morar com ele em Puerto Colombia, uma cidade caribenha onde criamos juntos um espaço de arte independente chamado La Usurpadora. Hoje em dia moro sozinha e minha vida anda bem tranquila. Agora, tudo acontece na internet. O mundo real parece não interessar tanto aos mais jovens. As pessoas sempre saem em busca de companhia, mas você vê tudo igual de sua casa em um Stories do Instagram. Me faz falta lugares para sair e escutar boa música.


 


CT: Você pode me contar um pouco sobre Gods Tropical Fanzine. Você ainda os produz?

MIR: Eu primeiro produzi Tropical Goth, que reúne projetos de artistas colombianos e mexicanos que trabalham em torno da estética do Gótico Tropical, depois editei Tropical God, que é a contraparte do Tropical Goth, seu lado mais brilhante, e explora as obras de artistas com interesses espirituais, que buscam a Deus de maneiras estranhas ou criam seus próprios deuses, ídolos, mundos energéticos ou sutis. O terceiro post foi Tropical Porn que editei junto com Cain Press e Beatriz López e que explora a forma como os artistas se aproximam da indústria pornográfica.

CT: No que você está trabalhando agora?

MIR: Estou focada em fazer um podcast, que reúne meus interesses em música, mediunidade, espelhos, cogumelos, Robert Smithson e finais de livros de ficção científica. Chama-se No Fim do Mundo. Eu realmente gosto de escrever e publicar, com Mario, eu trabalho no projeto La Usurpadora. Com o artista José Saní tenho um projeto chamado El Huevo y la Gallina, e com minha amiga Carolina Ponce, queremos começar uma editora chamada Rosa Lux. No momento, meu projeto colaborativo favorito é o design e a construção da minha casa, que estou construindo junto com meu pai.

CT: Existe alguma mensagem que você deixaria para a juventude?

MIR: Como disseram os presos em sua famosa canção “A dança dos que sobraram”: Eu sei algumas histórias sobre o futuro, da vez que eu as aprendi era mais seguro.







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