PONTO FIRME
21 de julho de 2020
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Texto Bruno Mendonça
Fotografia Cassia Tabatini, Danilo Sorrino e Vivi Bacco
Edição de Moda Thiago Ferraz
Styling Gustavo Silvestre
Modelo Alex Jordan
Agradecimentos Secretaria De Administração Penitenciária, Coordenadoria de Unidades Prisionais da Região Metropolitana de São Paulo e Penitenciária II “Desembargador Adriano Marrey”, de Guarulhos e Gustavo Silvestre
Iniciado em 2015 na penitenciária masculina desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos,o projeto ponto firme, desenvolvido pelo artista Gustavo Silvestre, utiliza a técnica do crochê como uma forma de transformação e ressocialização da população carcerária. Após diversos desdobramentos, como um comentado desfile no evento São Paulo Fashion Veek, a Fort fez o primeiro editorial dentro do presídio, a partir de um processo horizontal de interlocução e criação.



Bruno Mendonça: Gustavo, conte um pouco como começou o projeto ponto firme.
Gustavo Silvestre: Tudo começou em 2015. Eu ainda estava envolvido com o espaço Novelaria aqui em São Paulo, e em um determinado momento a Secretaria do Estado de São Paulo, em parceria com uma pastoral, nos procurou para propor algum projeto para a Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos. Isso é comum, normalmente o Estado tem parcerias com pastorais, ONGs, entre outros grupos que desenvolvem essas ações educativas nos presídios. A partir desse convite, fizemos a proposta de uma oficina de crochê. Num primeiro momento, fiquei superpreocupado porque é um presídio masculino, pensava em como iria ser a recepção dessa atividade, além do fato de eu nunca ter estado dentro da realidade carcerária. Eram muitas questões, mas fui de peito aberto. Após algumas reuniões e entendendo melhor as demandas do lugar entendi que um primeiro passo seria o de levar o crochê como uma ferramenta de afeto para dentro daquele local. Comecei com 11 presos que já faziam trabalhos manuais lá dentro. Normalmente esses presos são os que possuem uma espécie de “bonificação” por bom comportamento. Com o tempo, fui entendendo também essas dinâmicas, normas e hierarquias. O crochê seria também algo positivo para eles neste sentido. Enfim, a coisa foi crescendo, e hoje são muito mais do que 11 detentos, temos até fila de espera para participar da oficina. Isso para mim é muito gratificante!





Bruno Mendonça:De
fato foi um processo rápido, mas intenso se formos pensar em tudo que
aconteceu nesses três anos. Existe uma potência aí sem dúvida. De fato, o projeto
se encontra agora em um ótimo momento, mas gostaria de saber como é ou como
foi a relação deles com o crochê, prática que ficou por tanto tempo fora do
universo masculino. Não houve nenhum tipo de conflito pelo fato de você ser
gay, de vir da moda – enfim, elementos que poderiam suscitar embates, mas
também debates positivos sobre gênero e sexualidade?
Gustavo Silvestre: Lá infelizmente é um ambiente bem machista, o que é quase óbvio. Mas, não é majoritariamente de heterossexuais, embora, a comunidade LGBTQIA+ ali seja bem frágil, e sim, existem muitos problemas entre os grupos. Acho que é um dos ambientes mais machistas em que já estive. Eles também têm políticas próprias lá dentro, é bem complexo. Existem poderes, códigos. Porém, o Ponto Firme foi um ruído dentro dessa estrutura. Mas, muitos dos que vão para as oficinas, como já estão dentro desta lógica do “bom comportamento”, existe neles aí uma vontade de diálogo e de mudança. Não estou julgando os outros e nem dizendo que os que ainda não entraram nessa chave não queiram mudar suas vidas; mas, por metodologias internas, é assim que funciona, e os que chegam até mim são esses que já estão disponíveis. Sobre o fato de eu ser gay e ter trabalhado com moda, eles não entram muito nesse mérito. Entenderam desde o início que isso não estava em pauta. Acho que isso também foi dado pela forma como cheguei, de coração bem aberto. E também, não criei um personagem, mais masculinizado ou com menos trejeitos – fui o Gustavo Silvestre que sou. Acho que essa naturalidade “deu o recado” por si só. O objetivo com eles, acima de uma discussão de gênero ou sexualidade, era o de propor uma reconexão com um lado mais humano, com o próprio corpo, com uma ancestralidade, memórias afetivas e emocionais. Eu, por exemplo, por meio do crochê, eu me conecto com a minha bisavó! Isso é lindo e aconteceu com eles! Talvez a política, neste sentido, esteja nesse lugar mais subjetivo e psicológico mesmo, pois, ao colocá-los em contato com suas mães e avós, já estou dando um nó na cabeça deles em relação ao machismo, mas sem falar nada, apenas retrabalhando esse imaginário.
Gustavo Silvestre: Lá infelizmente é um ambiente bem machista, o que é quase óbvio. Mas, não é majoritariamente de heterossexuais, embora, a comunidade LGBTQIA+ ali seja bem frágil, e sim, existem muitos problemas entre os grupos. Acho que é um dos ambientes mais machistas em que já estive. Eles também têm políticas próprias lá dentro, é bem complexo. Existem poderes, códigos. Porém, o Ponto Firme foi um ruído dentro dessa estrutura. Mas, muitos dos que vão para as oficinas, como já estão dentro desta lógica do “bom comportamento”, existe neles aí uma vontade de diálogo e de mudança. Não estou julgando os outros e nem dizendo que os que ainda não entraram nessa chave não queiram mudar suas vidas; mas, por metodologias internas, é assim que funciona, e os que chegam até mim são esses que já estão disponíveis. Sobre o fato de eu ser gay e ter trabalhado com moda, eles não entram muito nesse mérito. Entenderam desde o início que isso não estava em pauta. Acho que isso também foi dado pela forma como cheguei, de coração bem aberto. E também, não criei um personagem, mais masculinizado ou com menos trejeitos – fui o Gustavo Silvestre que sou. Acho que essa naturalidade “deu o recado” por si só. O objetivo com eles, acima de uma discussão de gênero ou sexualidade, era o de propor uma reconexão com um lado mais humano, com o próprio corpo, com uma ancestralidade, memórias afetivas e emocionais. Eu, por exemplo, por meio do crochê, eu me conecto com a minha bisavó! Isso é lindo e aconteceu com eles! Talvez a política, neste sentido, esteja nesse lugar mais subjetivo e psicológico mesmo, pois, ao colocá-los em contato com suas mães e avós, já estou dando um nó na cabeça deles em relação ao machismo, mas sem falar nada, apenas retrabalhando esse imaginário.

Bruno Mendonça: Mas você não os provoca levantando debates, ou mesmo de formas mais sutis em conversas individuais ou em grupo?
Gustavo Silvestre: Isso às vezes acontece, mas o foco nos nossos encontros é o crochê e a prática. Lógico que, como eu disse, durante essa trama as coisas surgem, às vezes até no silêncio, nos olhares, ou mesmo em conversas mais abertas. Mas, eu não fico como um intelectual ou um ativista levantando essas discussões, como se fizesse parte do método – deixo o próprio processo fazer isso. Mas sim, já discutimos muitas coisas. Tem muitos presos com uma formação evangélica, o que é bem complexo. Contudo, toda semana tento entender a força e o poder deste trabalho. Por que tem fila de espera? Sei que eles se falam lá dentro, mas o que dizem uns aos outros? Isso é interessante. Acho que tem algo que mexe com o corpo mesmo. Enfim, sou apenas uma ferramenta! Unicamente. Outra coisa que não faço é ficar com um tom professoral demais e “muito mão de ferro” em relação ao estilo deles, como usam as cores, os fios. Aí do nada aparecem coloristas incríveis ou grandes desenhistas. É isso, novamente, o processo é quem manda.
Bruno mendonça: Maravilhoso! Outra coisa que gostaria de saber é por que o crochê e outras técnicas têxteis e manuais voltaram com tanta força nos últimos anos?
Gustavo Silvestre: Acho que é uma resposta ao sistema econômico e político atual e a toda essa virtualidade. É até possível para aprender crochê e outras técnicas têxteis com tutorial na internet, mas nada substitui a relação com o outro, o encontro. Para mim, essas técnicas, como já falei, têm a ver com ancestralidade, história oral, transmissão de conhecimento corpo a corpo. Existe uma ideia de fábula também. Isso não pode ser substituído pelo virtual, em minha opinião.



Bruno Mendonça: Concordo totalmente, acho que é sobre essa passagem entre passado, presente e futuro, algo que quebra uma visão essencialmente desenvolvimentista. Agora outra coisa que eu gostaria de entender é como foi essa escolha de apresentar o projeto no São Paulo Fashion Week?
Gustavo Silvestre: Projetos como o Ponto Firme são muito delicados, pois mexem com autoestima. Fiquei muito tempo pensando nisso também. Depois de um tempo de trabalho, realmente tínhamos algo para apresentar, e fiquei com isso na cabeça, como trazer visibilidade e autoestima para o grupo. Afinal, a população carcerária já vem com um repertório de muita dor e miséria. Normalmente são pessoas com um histórico bem difícil e que acabaram no crime. A violência precisa ser entendida de forma mais ampla, como um sintoma de questões raciais, de classe, e por aí vai...principalmente num país como o nosso. Nessa minha indagação, cheguei à de que num país como o nosso, além da violência ser superficialmente analisada, ela é “espetacularizada” pela grande mídia. E é a grande mídia que ainda domina uma boa parte do que se consome de informação nesse “Brasil profundo”, mesmo com a internet! Pensei que talvez o evento fosse um bom gatilho para se chegar à mídia convencional, principalmente a televisão. O Ponto Firme já tinha sido tema de várias matérias, mas dessa vez seria necessário um foguete! Além diso o SPFW, já teria toda a estrutura de que eu precisaria para fazer o desfile, ou seja, não teria grandes gastos. Foi uma estratégia, afinal, se tudo é espetáculo, espetáculo farei! E isso foi muito importante para eles! Fiz uma única exigência: que eles tivessem, antes, a oportunidade de fazer um desfile interno, com quase toda a estrutura original do que seria realizado fora. Afinal, não faz sentido tirar de lá
e não trazer nada para dentro. A Karlla Girotto foi bem importante neste sentido, pois ela desenvolveu uma interlocução muito forte com eles, explicando que se tratava de narrativa, discurso e performatividade.





Bruno Mendonça: você falou sobre essa relação entre o dentro e o fora; como foi, após o SPFW, o processo com a Fort, sendo que ela será a primeira a publicar um editorial produzido com o ponto firme...
Gustavo Silvestre: Adorei a proposta da Fort, pois, para mim, seria um desdobramento de toda essa empreitada. Queria que fosse mais uma experiência para eles. Deixei a coisa rolar o mais livre possível...
Era interessante ter a Cassia ali os fotografando, primeiro, porque é uma mulher e, segundo, porque ela vem com muita identidade, mas também muito respeito. Acho que é a coisa da fotografia documental, algo que, para além do desfile, permitirá ter esse registro, um documento. Vai mesmo ser muito importante!

Conheça mais o trabalho Ponto Firme aqui.